Recentemente, iniciou-se ofensiva contra aqueles que buscam a reparação integral dos danos causados pelos crimes ambientais ocorridos há quase uma década por conta do desastre ocorrido no município de Mariana (MG), que impactou não só os habitantes da cidade, mas milhões de pessoas ao longo de toda a bacia do Rio Doce, naquele que é por muitos considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil.
Essa tática organizada, muito semelhante a uma guerrilha jurídico-midiática, tenta deslegitimar a busca por justiça pelos afetados suscitando uma pretensa “alienação da soberania nacional” em razão da existência de ações no exterior.
Essa ventura esconde não outra senão uma ofensiva contra as vítimas, a maioria delas despossuídas e sem recursos para perseguir ativamente uma reparação mais do que devida.
Argumenta-se que as ações em curso no estrangeiro representam um “menosprezo” ao sistema jurídico brasileiro. Ao que parece, olvida-se o fato de que as ações no exterior estão sendo julgadas a partir do direito material brasileiro, avançadíssimo em matéria de proteção a direitos humanos e ao meio-ambiente, desde a aprovação da Carta Magna de 1988.
Direito global para problemas globais
Nunca tanto se discutiu e admirou, aqui e no exterior, decisões judiciais brasileiras em matéria ambiental, como aquela, pioneira e original em todo o mundo, do ministro Herman Benjamim em que se define o poluidor indireto [1].
Trata-se de verdadeira exportação do Direito pátrio, altivamente aplicado em outros fóruns, dentro da ótica cada vez mais predominante de um direito globalizado e transfronteiriço. Só esse Direito globalizado é capaz de atingir empresas transnacionais responsáveis por desastres ambientais no Sul Global, em suas sedes, onde mais sentem os seus efeitos. Para fazer frente a interesses globais, é necessária uma estratégia de atuação global, e não local.
Repita-se: se os problemas são globais, o Direito também deve sê-lo. E nessa nova velha dinâmica de concorrência global, o Brasil – e o Direito brasileiro – deve ser protagonista. Não criando competição entre sistemas jurisdicionais, mas obrando para que as Justiças colaborem, através de ações que mutuamente se reforçam (ACPs no Brasil e ações de representação direta na Inglaterra e Holanda) nos diferentes foros. Novamente: coordenação global para dar efetividade a direitos que se espraiam pelo mundo.
Ficha corrida
Nessa discussão, pouco se fala, todavia, a respeito de dois outros fatos, estes sim, que deveriam causar repúdio e preocupação.
O primeiro diz respeito ao quem. Não se está litigando contra inovadoras empresas brasileiras que capitaneiam o desenvolvimento nacional. Do outro lado dessa disputa, combatendo com armas e dentes, está uma mineradora anglo-australiana com uma ficha corrida bastante questionável no que diz respeito ao seu, digamos, engajamento na proteção do meio ambiente. Pois lembremos do caso Ok Tedi [2].
Nos anos 90, após causar grave desastre ambiental em Papua Nova Guiné, impactando mais de 30 mil vidas, a BHP tentou impedir o julgamento de uma série de ações propostas pelas vítimas na Suprema Corte de Victoria (Austrália) nas quais buscavam reparação pelos danos causados.
A mineradora atuou firmemente em defesa de uma legislação que impedisse tal tipo de demanda. Inicialmente condenada [3] por tentar impedir o funcionamento das Cortes e o acesso à Justiça, a BHP em seguida buscou acordo para indenizar as vítimas.
Ou seja, a anglo-australiana BHP, que controlava as atividades da Samarco e, por consequência, foi co-responsável pelo desastre de Mariana, tem um histórico de causar danos ambientais e, em seguida, tentar impedir o acesso à justiça de vítimas através de estratégias legislativas ou processuais.
Manobra
Segundo fato, diga-se, curioso: a existência de misterioso e recém-divulgado acordo firmado entre duas gigantes da mineração global, concorrentes diretas, para que a brasileira Vale deixe de figurar como parte da principal demanda em curso no exterior (na Inglaterra) em favor de uma defesa orientada pela anglo-australiana BHP.
Muito se deveria questionar a este respeito. Conforme amplamente noticiado pela própria Vale [4], a companhia brasileira abandonou a oportunidade de se defender, em favor de uma defesa indireta, que será conduzida e liderada por uma empresa estrangeira. Aos que defendem “soberania nacional” isso deveria soar no mínimo bem estranho.
Mas, pasme-se, há mais: o acordo firmado entre as mineradoras aparentemente não garante benefício à Vale e prevê que a companhia brasileira arque com 50% de eventuais custos relacionados a uma condenação ou acordo.
Quais foram as motivações para que uma gigante nacional renunciasse a seus interesses, em favor daqueles de sua concorrente internacional? Esse acordo parece remontar à subordinação do Brasil, por meio de uma de suas maiores companhias, aos dissabores de uma gigante – e concorrente! – anglo-australiana.
A Vale, e seus acionistas, brasileiros, potencialmente pagarão por algo dito e desdito pela mineradora concorrente e estrangeira. Será essa a adequada proteção dos interesses nacionais e da própria empresa (Vale)? Descaso com os interesses das vítimas e subordinação de relevantíssima empresa nacional às decisões de uma gigante anglo-australiana?
Inércia e espoliação
Aliás, diga-se de passagem, é certo que nossas autoridades — de controladoria e concorrencial — não podem ficar inertes diante desse acordo. Duas gigantes mineradoras concorrentes firmam um pacto, confidencial em sua maior parte (vide nota 5), que pode afetar o ambiente concorrencial brasileiro e os direitos das vítimas e de muitos municípios brasileiros prejudicados pelo maior desastre ambiental do mundo nas últimas décadas e não há nada a ser dito pelas autoridades?
O âmbito e extensão do compartilhamento de interesses entras as empresas signatárias do acordo não precisa ser esclarecido e justificado para proteger a ordem econômica brasileira em seus vários e fundamentais aspectos (proteção do meio ambiente e da concorrência)?
A história colonial parece repetir-se. Acordo entre empresas oligopolistas, com submissão da nacional à estrangeira. Histórico de empresa estrangeira de tentar impedir o acesso à Justiça dos atingidos. Imposição do poder econômico. No meio disso, espoliação dos mais vulneráveis — que só são beneficiados e jamais prejudicados pela multiplicação de ações no Brasil e no mundo, em defesa dos seus direitos e sinalização ruim sobre a proteção de nosso meio ambiente.
Argumentar com a necessidade de garantir-se a segurança jurídica das empresas diante das ações em curso relativas ao caso de Mariana, para promover investimentos, previsibilidade e alavancar a agenda de negócios no país é ofensivo às vítimas e ao meio ambiente, que continua sofrendo os efeitos do desastre ocorrido há quase uma década [5]. As vítimas sim continuam a viver em situação de total insegurança, jurídica, econômica, ambiental, psicológica e social. Esse é o mundo no qual as vítimas não mais do que sobrevivem, há mais de oito anos.
Melhor faríamos se compreendêssemos nosso sentimento nacionalista e social como dever de proteção aos brasileiros atingidos e mais vulneráveis e ao meio ambiente e não como uma competição entre sistemas judiciários. Defender o interesse nacional, neste caso, significa tutelar e apoiar as vítimas em todas as suas iniciativas para proteger seus direitos, aqui ou no exterior, e garantir a não submissão dos interesses de uma empresa nacional a uma estrangeira.
Proteção contra os predadores da natureza
Em um momento de emergência climática tão severo, em que o Brasil passa por ameaças crescentes ao seu riquíssimo ecobioma (basta ver os recentes e descontrolados incêndios por todo o país), não parecer haver dúvida de que a proteção dos interesses nacionais passa pela garantia de indenizações justas e relevantes economicamente o suficiente para desincentivar comportamento predatórios presente e futuros ao meio ambiente.
Nesse contexto, o caso de Mariana é uma oportunidade de consolidar o Direito brasileiro como um Direito global no campo ambiental e colocar o Brasil na liderança jurídico-política nessa agenda. Que o Brasil tenha maturidade jurídica e política para aproveitar essa oportunidade.
[1] STJ, 2ª Turma, REsp n. 650.728-SC, Relator Min. Herman Benjamin. DJ: 23/10/2007.
[2] A Ok Tedi Litigation envolveu uma série de ações de reparação propostas por moradores de vilas ao longo dos rios Ok Tedi e Fly, localizado na Papua Nova Guine. A BHP explorou atividades de mineração na mina de cobre Ok Tedi durante décadas, período no qual a empresa despejou dezenas de milhões de toneladas de resíduos de mineração no rio, provocando um dos maiores desastres ambientais de que se tem notícia. O caso foi encerrado com um acordo extrajudicial considerado insatisfatório por entidades de defesa de direitos humanos. Sobre o assunto, veja-se: KIRSCH, Stuart. Is Ok Tedi a precedent? Implications of the lawsuit. In: BANKS, Glenn; BALLARD, Chris (Eds.). The Ok Tedi Settlement: issues, outcomes and implications. Canberra: 1997, pp. 118-140; e, KIRSCH, Stuart. No Justice in Ok Tedi Settlement. 07/05/2010.
[3][3] Essa condenação foi revertida em segunda instância, por razões processuais (falta de legitimidade) sem que se entrasse ou revisse o mérito da decisão condenatória inicial.
[4] VALE. Vale e BHP firmam acordo sobre reclamações no Reino Unido e Holanda. 12/07/2024. Disponível em: https://vale.com/pt/w/vale-e-bhp-firmam-acordo-sobre-reclamacoes-no-reino-unido-e-holanda. Na referida divulgação, Vale afirma o seguinte: “A Vale e a BHP firmaram um acordo confidencial, sem qualquer admissão de responsabilidade, segundo o qual a ação de contribuição movida pela BHP contra a Vale, em conexão com as Reivindicações do Reino Unido, será retirada. O efeito do acordo é que, caso se conclua que a BHP tem qualquer responsabilidade perante os requerentes nas Reivindicações do Reino Unido, ou caso qualquer responsabilidade seja por fim atribuída à Vale perante os requerentes na Holanda, tal responsabilidade seria dividida igualmente entre a BHP e a Vale. Todos os outros termos do acordo permanecem estritamente confidenciais”. Observe-se que nos termos divulgados não parece haver reciprocidade no referido acordo. A ação proposta na Inglaterra é muito maior em valor e numero de participantes do que a ação holandesa, como o próprio fato relevante deixa claro.
[5] Como demonstram recentes estudos o efeitos do desastre não estão totalmente consumados, continuando a produzir danos antigos e novos- https://g1.globo.com/es/espirito-santo/norte-noroeste-es/noticia/2024/09/11/apos-9-anos-metais-do-desastre-de-mariana-chegam-as-baleias-no-litoral-desastre-continua-acontecendo-diz-pesquisador.ghtml