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Gurgel: o sonho de um fabricante brasileiro de carros elétricos se tornou realidade há 50 anos

História mostra o desejo quase obstinado de João Augusto Conrado do Amaral Gurgel em fabricar um veículo 100% nacional

Por Raphael Panaro

1º de setembro de 1969 é uma data que vai ficar marcada para sempre na história da indústria automobilística brasileira. Há 50 anos, o engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel realizava um sonho e fundava a Gurgel Motores, uma fabricante de automóveis 100% nacional.

Mas a narrativa começa 20 anos antes. Em 1949, Gurgel se formava na Escola Politécnica de São Paulo. Seu projeto de conclusão da graduação era um carro popular que atendesse as necessidades brasileiras.

O nome era sugestivo: Tião. Reza a lenda que seu orientador jogou um balde de água fria na ideia mirabolante falando que “carro não é algo que se fabrica, carro se compra”. Gurgel apresentou uma proposta de guindaste para finalizar seus estudos. A ideia do automóvel, no entanto, nunca saiu de seu imaginário.

O BR 800 foi um carro icônico para a marca (Foto: Gurgel) — Foto: Auto Esporte

O BR 800 foi um carro icônico para a marca (Foto: Gurgel) — Foto: Auto Esporte

Começou fazendo karts e pequenos modelos infantis. Eram bem feitos, funcionais com motores monocilíndricos e capacidade para duas crianças.

Em setembro de 1969 a coisa ficou mais séria. Ainda em São Paulo, Gurgel fabricou seu primeiro carro: Ipanema. A história da marca traz nomes dos veículos bem enraizados do Brasil, principalmente de tribos indígenas.

Tratava-se de um bugre com capota de lona e feito de plástico reforçado com fibra de vidro. Usava componentes (suspensão e motor a ar 1.6) da Volkswagen. A clássica mecânica de Fusca ajudava na imagem de confiabilidade.

Surpreendeu tanto por sua capacidade no fora de estrada que, quatro anos depois, o Ipanema ficou mais robusto e foi transformado em uma espécie de jipe, com linhas bem quadradas. O nome? Xavante.

Gurgel registrou a patente do chamado Plasteel, um chassi que misturava plástico e aço. A carroceria do Xavante continuava a ser feita de plástico reforçado com fibra de vidro – e agora tinha um estepe sobre o capô. As rodas vinham calçadas em pneus de uso misto.

A novidade era o Selectraction, que garantia um bom desempenho off-road. A tecnologia da época consistia, por meio de alavancas, em frear a roda que patinava, por exemplo, e transferir a força para a outra roda com mais aderência e assim vencer o obstáculo – o que faz o diferencial nos dias atuais ou o sistema Locker da Fiat.

O Xavante foi um dos principais produtos da Gurgel, perdurando quase até o fim da empresa. Caiu nas graças do Exército Brasileiro, que comprou um grande lote. Estes modelos caíram nas graças do Exército Brasileiro – havia uma versão específica para as Forças Armadas. Na sequência vieram as evoluções, X-10 e X-12, este último uma variante civil.

Com o sucesso, Gurgel resolver expandir o negócio e, em julho 1973, comprou um terreno em Rio Claro, no interior de São Paulo, para construir uma fábrica maior, que ficaria pronta dois anos mais tarde.

Nesse ínterim, outro passo ousado foi dado: um projeto de carro elétrico. O nome era mais uma homenagem ao Brasil: Itaipu E150, referente a usina hidrelétrica no Paraná. O carrinho minimalista de apenas dois lugares e design geométrico teve 27 protótipos produzidos. Pesava 460 kg, sendo 320 kg apenas das baterias.

A velocidade máxima dos primeiros modelos chegava a 30 km/h – os últimos atingiam 60 km/h. Apesar da previsão de começar a ser produzido em série a partir de dezembro de 1975 – com a expansão da fábrica de Rio Claro –, o Itaipu sofreu naquela época com problemas que são uma grande questão para os veículos elétricos atuais: peso das baterias, autonomia e durabilidade.

O modelo parou na fase conceitual e os protótipos viraram item de colecionador. Se tivesse sido produzido em série, o Itaipu seria o primeiro elétrico feito no Brasil — embora possa ser considerado como tal, uma primazia da Gurgel. A Caoa Chery será a primeira a fazer um modelo elétrico em massa no Brasil, como o sedã Arrizo 5e (confira o teste). 

Mais tarde, em 1980, Gurgel ainda apostaria no Itaipu E400, um furgão também elétrico que fez parte da frota de empresas brasileiras de eletricidade, mas também durou pouco. Tinha o equivalente a 11 cv, 80 quilômetros de autonomia e as baterias levavam até dez horas para serem recarregadas.

Voltando a 1976, o X12 passou a ter teto rígido, faróis embutidos na carroceria e um guincho na dianteira com 25 metros de extensão para encarar situações no fora de estrada. Em 1979, Gurgel lançou o furgão X15 – e suas variantes – e expôs sua linha de produtos no importante Salão de Genebra, na Suíça. Nessa época a gama da Gurgel chegava a ter uma gama de dez modelos – todos movidos a gasolina ou álcool.

O empresário não era muito a favor do combustível vegetal. Dizia que era melhor “usar as terras para o plantio de alimentos do que para alimentar veículos”.

No início dos anos 1980 a Gurgel resolve apostar no XEF, um sedã de duas portas e com três bancos dianteiros. Tinha apenas 3,12 metros (um VW up! tem 3,68 m), 680 kg e mecânica da Volkswagen Brasília. O tamanho diminuto, a falta de capacidade para levar grandes bagagens e, sobretudo, o preço prejudicaram as vendar do mini sedã.

Nos anos seguintes, o X12 – principal modelo da Gurgel e que foi rebatizado para Tocantins – passou por diversas atualizações. Até que, em 1984, surgiu o Carajás, uma espécie de SUV da época com motor 1.8 de origem VW e refrigeração líquida – e não a ar como os demais. O desenho era quadradão, com o estepe em cima do capô. A suspensão era independente nas quatro rodas. 

O sonho de ter um carro compacto 100% nacional durou pouco, entre 1988 e 1991. Mas teve seus méritos enquanto durou. O motor 0,8 litro, feito de alumínio e silício, foi um deles. Projetado pela própria Gurgel, funcionava bem com refrigeração a água e sistema de ignição que dispensava distribuidor.

Mas não se entendia bem com a transmissão de relações longas, vinda a picape Chevy 500. O resultado era pouca agilidade. Outro problema ficava por conta da ventilação precária da cabine, o que tentou ser resolvido com uma escotilha pequena na capota. Prejudicado pela legislação tributária e pelos fortes concorrentes no mercado, o BR 800 deixou de ser fabricado quatro anos depois do lançamento.

Em meados de 1993, o fim do fabricante nacional estava próximo. A Gurgel entra em concordata. A última tentativa de salvar a marca – e a fábrica – foi o pedido de empréstimo de US$ 20 milhões ao Governo Federal. Um ano depois, em 1994, a Gurgel declara falência – 40 mil carros foram vendidos em toda a história –, porém o sonho, a trajetória e a contribuição de João Augusto Conrado do Amaral Gurgel – que faleceu em 2009 – seguem na memória 50 anos depois.

A história da Gurgel volta à tona em 2004. Mas de uma forma bem esquisita. Um emprésario paulista aproveitou a prescrição do registro do nome Gurgel no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e o comprou – inclusive com o logotipo. Diz-se que pagou módicos R$ 850. Fato é que a “nova marca” comercializa triciclos e empilhadeiras chinesas e a sede da empresa está localizada na cidade de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul.

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